Filatelia em Portugal: Artigo, Inteligência Emocional

Filatelia em Portugal: Artigo, noticias do dia de hoje no mundo

Artigo

Inteligência Emocional

Helena Neves

Cultivamos com tanto carinho o coleccionismo de selos e outras peças filatélicas que temos a tendência a projectar para além da nossa existência a continuidade de uma tal actividade, interrogando-nos sobre o seu futuro.
Tenho por adquirido que só existem duas vias concomitantes para que esse futuro exista, associada a uma terceira, particularmente importante num país como o nosso:

  • Os selos continuarem a ser utilizados na correspondência, o que passa sobretudo por uma atitude deliberada das administrações postais.
  • O gosto pelo coleccionismo, de um coleccionismo que tem evoluído muito rapidamente nas suas formas e conteúdo, ganhe crescentes camadas da população, particularmente as jovens.
  • A filatelia tem que assumir uma forma pública, estar visível nas ruas, nos locais que frequentamos, nas publicações vendidas nos quiosques, na televisão e outros meios audiovisuais.

É sobretudo a difusão junto da juventude que me preocupa. Para tal uma preocupação maior está em conseguir-se ligações entre a filatelia e a escola. É nesse sentido que as energias dos filatelistas e das suas estruturas devem ser aplicadas e não em cheirarem palacianamente conspirações, organizarem iniciativas sem impacto, preocuparem-se com as canções de escárnio e maldizer, sonhar com viagens inúteis ou outras quimeras.
Foi neste contexto de preocupações que ao ouvir no rádio (TSF) uma crónica sobre o papel da emoção no funcionamento da inteligência encontrava novos trunfos para essa tão desejada ligação amorosa entre a filatelia e o ensino/aprendizagem. Pedida à autora aqui a apresento.
É um discurso que muitos poderão considerar de não filatélico, e efectivamente não o é em sentido estrito, mas há muitas maneiras de levar a água ao nosso moinho.

Foi publicado no nosso país um livro que, no ano passado, acendeu fortes polémicas nos EUA. Refiro-me à obra Inteligência Emocional, de David Goleman, psicólogo e colaborador assíduo no New York Times. A tese do livro sintetiza-se facilmente: a inteligência não se limita à razão, ao pensamento dito racional, claro, distinto, lógico. A razão não é suficiente, não basta, não funciona mesmo sem o domínio emocional. Escreve Goleman: “Uma visão da natureza humana que ignore o poder das emoções é tristemente míope. O próprio nome Homo sapiens, a espécie que pensa, é enganador à luz da nova apreciação e visão que a ciência actual tem do lugar das emoções nas nossas vidas. Como todos nós bem sabemos por experiência própria, quando se trata de formular as nossas decisões ou as nossas acções, o sentimento conta tanto, e muitas vezes mais, do que o pensamento. Fomos demasiado longe na ênfase que damos ao valor e importância do puramente racional aquilo que o Ql. mede – na vida humana. Para o melhor e para o pior, a inteligência pode não ter o mínimo valor quando as emoções falam” (Inteligência Emocional, Circulo de Leitores, 1996, p.27).

Teses semelhantes enunciara já António Damásio, investigador do cérebro, director do Departamento de Neurologia da Universidade de Iowa, na sua obra O erro de Descartes: a racionalidade só pode existir em simbiose com a emoção; ou ainda, mais claramente, sem emoções não há razão, sem emoções a inteligência fica inoperante, vazia, paralisada. Cabe a David Goleman afirmar no domínio da psicologia o que António Damásio sistematizou no campo da neurologia. Escreve Goleman que a verdadeira medida da inteligência não é o Quociente de Inteligência, Ql., mas o Quociente Emocional, QE, e conclui que a grande revolução dos anos 2000 será a desforra do sentimento sobre a inteligência.

Convenhamos que esta desforra já não era sem tempo. Na realidade, a luta entre razão e emoção, pensamento e sentimento, o dualismo corpo-mente, percorre toda a história da humanidade ‘ inscreve-se na perspectiva filosófica e no senso comum. Quase sempre é o coração, o emocional, o lado vencido. “O coração teria razões que a razão desconhece”. Ou seja, o domínio emocional constituiria um terreno do confuso, do ambíguo, do subversivo, opondo a desordem do desejo à ordem da necessidade.

Pensadores do filosófico, do científico, do religioso, do social, invariavelmente situaram as emoções no território menos nobre, do corpo, vertente do pecado para os cristãos, e para todos, crentes e ateus, causa de desequilíbrio do institucional através do desequilíbrio individual. As emoções seriam o vício dos poetas, a marca da desigualdade das mulheres, o traço de insensatez dos loucos. É apenas com Freud, no século XIX, que a linguagem das emoções ganha legitimidade científica. Freud vai descobrir que não somos senhores de nós, que não nos vemos claramente vistos, que além do racional, do consciente, e dominando-o, há um inconsciente que nos faz desconhecidos de nós próprios, e plurais. Seria Freud a desferir o maior golpe no racionalismo, a humilhar o que ele próprio chamou a “megalomania humana” da crença no absolutismo da razão.

Porém, o absolutismo da razão resistiu e resiste ainda como paradigma dominante e dominador do sistema ocidental de valores, impregnando todas as esferas da vida social, desde a educação ao emprego. Uma das melhores Enciclopédias, a EINAUDI, prosseguindo na dicotomia conhecimento e emoção, separa nitidamente a inteligência da “contaminação” afectiva: “Enquanto ideia de uma faculdade «mental», o estudo e as teorias ligadas à inteligência unitariamente coordenada deu origem, desde sempre, a definições e conceitos que variam, mas que têm como característica comum ser unanimemente considerada como uma predisposição cognitiva (conhecimento) perfeita e claramente distinta da afectiva (emoção) ou da disposição de motivação“.

A inteligência continua a ser mensurável e medida, quantificada e padronizada. O yuppie é a representação do Ql. do mesmo modo que o hippie – “make love not war” – poderia ser a metáfora do QE. Só que, neste final de século, várias obras apareceram questionando as certezas absolutas. Como se a ciência, de repente, concedesse que os poetas, os Românticos, quando falavam no sexto sentido tinham mais razão do que os puros e duros cartesianos. Na minha opinião, a obra de Goleman nem sequer constitui o melhor exemplo nesta via de questionamento e contestação. O seu sucesso dever-se-á à sua estrutura e linguagem muito simples (às vezes simplista), mas também ao facto de ter surgido num momento em que se verifica algum espaço de “cidadania teórica” para o emocional.

Trata-se, sem dúvida, de uma interessante obra de divulgação, em que o autor se situa no quotidiano de toda a gente, no domínio prático, com “receitas” sobre desenvolvimento emocional interessantes no plano educativo, familiar e escolar. Para os professores treinados e viciados na “objectividade”, a obra é quase imprescindível. Note-se que actualmente, nos EUA, se desenvolvem projectos de aprendizagem social e emocional preventivos da violência e depressão juvenis. Mas Goleman não descobriu a América nem sequer o ovo de Colombo. Outros autores o precederam. Citemos os mais “ousados”. O paleobiologista Stephen Jay Gould com a obra A má medida do Homem (1985), refuta as teorias científicas de medição da inteligência e o seu fundamento de determinismo biológico. Obra fundamental, publicado nos anos 80, é também a de Oliver Sacks, propondo e praticando “uma nova ciência do cérebro e do espirito”, “uma neurologia de identidade” através da qual os doentes tradicionalmente considerados perdidos, porque incapazes de reconstruir abstractamente e logicamente a identidade do outro e a sua própria, são recuperados por via do que permanece intacto no doente: a dimensão afectiva. Finalmente a decisiva investigação de António Damásio, sintetizada, de certo modo, na obra O erro de Descartes – Emoção, Razão e Cérebro Humano. Diz o autor: “a razão talvez não seja tão pura como a maioria de nós pensa ou gostaria que fosse”, e “as emoções e os sentimentos talvez não sejam intrusos no bastião da razão”. E acrescenta: “a ciência dá razão a Freud. A ciência tem de dialogar com a psicanálise”.

Sim, pensamos também com a emoção. Einstein já o dissera: “pensamos com o corpo”. Ou na belíssima expressão de Wittgenstein “o corpo humano é a melhor representação da alma”. “A inteligência é também necessária, imprescindível, irreversivelmente emocional” escreve Goleman. Podemos concluir como António Damásio: “o coração tem razões que a razão não ignora”.

O Slogan na moda nos EUA é ” IQ gets you hired, but EQ gets you promoted” (“Com o seu Ql. você arranja emprego, mas com o seu QE é promovido”).

Datado de 1997, publicado com autorização da autora